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VISUAIS-Mostra no MON marca 90 anos de Tomie Ohtake

(04/05/04)


A vida da pintora japonesa Tomie Ohtake, 90 anos, daria um filme. Nascida em Kioto, no Japão, em uma família burguesa, ligada ao ramo de madeireiras, ela veio ao Brasil a passeio, visitar um irmão, nos anos 30. A Guerra do Pacífico, em 1943, estourou no tempo de sua estada. Não voltou mais, até porque acabou se casando por aqui, com um agrônomo e farmacêutico nipo-brasileiro, com quem teve dois filhos, Ruy e Ricardo.

Tudo ia muito bem para a mãe de família que não conseguiu voltar para casa e adotou São Paulo como sua nova cidade. Até que, vendo as crianças já crescidas, decidiu pintar "umas coisinhas", como vasos de flores, paisagens e outras amenidades, como fazem centenas de mães de família por aí. Mas eis que um dos médicos do hospital psiquiátrico do Juqueri (um verdadeiro adjetivo em terras paulistanas) freqüentava os Ohtake e viu o que Tomi andava fazendo. Foi ele quem promoveu sua primeira exposição e fez um barulho em torno da anônima aprendiz de pintura.

Ela, que até então vinha nada mais do que preenchendo as horas vagas com tintas e telas, jamais imaginou que teria uma carreira. Pelo menos até flagrar sua cara estampada na capa de uma das mais importantes revistas brasileiras, nos anos 80. Ou ver o Museu de Arte de São Paulo (Masp) apinhado de gente atrás da novidade chamada Tomie Ohtake. O público foi de quatro mil pessoas na abertura da primeira grande mostra – a Paulista ficou congestionada naquele 1983, mas por um motivo diferente. E existem ainda as esculturas gigantescas em algumas das principais vias de Sampa. Sem falar nos autógrafos e no afeto dos paulistanos – um reconhecimento raro em se tratando de artistas plásticos no Brasil. Em resumo – toda essa história surpreende, principalmente Tomie.

Semana passada, quando abriu em Curitiba, no Museu Oscar Niemeyer, a mostra Tomie Ohtake na Trama Espiritual da Arte Brasileira, uma magnífica curadoria de Paulo Herkenhoff, a artista não conseguia esconder esse cineminha de sua vida. Não dá para dizer que ela estava assim "toda prosa", já que se trata de uma mulher de poucas palavras. Aos 90 anos não pronunciáveis, alguma dificuldade em se locomover, produzindo como se o tempo não tivesse passado e como se o corpo respondesse do mesmo jeito aos 40, quando tudo começou, ela passeava pelos corredores do MON com um sorriso de plantão.

Usava um carrinho para deficientes e acidentados oferecido por supermercados, shoppings e museus. Divertia-se com a brincadeira. E só parou para trocar umas palavras com o Caderno G sob pedidos. Antes, vaidosa, posou para fotos, sorriu, colocou-se de ladinho, como uma moça de colégio de freiras. Até que falou. Primeiro sobre um quadro que pintou, às pressas, exclusivamente para a mostra curitibana, um olho, todo em amarelo, de oito metros, uma referência explícita à inusitada arquitetura de Niemeyer para o local. "Achei que ia ser fácil. Fiz em quatro dias. Mas choveu e a tinta não secava", lamentou, sobre seu "amadorismo".

Mudou de assunto. Calcula pintar cerca de três horas e meia por dia – prazer que tem de interromper para ir à fisioterapia. Bons tempos aqueles em que desenhava sem parar, com os meninos pequenos, mas se controlando para não deixar os guris de lado. "Criar bem os filhos é mais importante do que a pintura", explica. Quando achou que tinha feito sua parte, com o apoio do marido, rendeu-se. Deu no que deu. "Eu não só não esperava como não entendia o que estava acontecendo. Não sei o que o doutor Oswaldo Osório César viu no meu trabalho que o deixou tão impressionado. E também tinha as críticas que o Geraldo Ferraz, de O Estado de São Paulo, escreveu a respeito das minhas pinturas, logo no início", comenta, não sem antes travar uma breve discussão com o filho, o designer gráfico Ricardo Ohtake, sobre de quem Oswaldo teria sido marido: de Tarsila do Amaral ou de Patrícia Galvão – ambas mulheres de um outro Oswald, o de Andrade. Uma delícia de confusão.

As críticas, o apoio dos amigos, dos jornalistas, e tudo mais, ajudaram a estreante Tomie a vender muitos quadros, como ela mesmo atesta, e a produzir muito mais do que esperava uma dona de casa. "Não dava tempo de nada. Eu tinha de pintar e pintar. Botei empregada". Ainda hoje, levanta-se às 5h30. Trabalha mais do que devia, segundo consta, e na hora da novela, está ressonando, sentada no sofá, esboços na mão. Mas não se rende às chinelas de flanela. Vá a um vernissage em São Paulo e arrisca encontrar a sra. Ohtake por lá.

O filho Ricardo, fiel companheiro da mãe, é quem atesta a disposição inacreditável de Tomie para a vida social – mesmo que ela jure de pé junto que dorme com as galinhas. Ricardo, vale dizer, é hoje a fonte mais importante sobre a artista. Acompanha as matinadas, as sessões de ginástica, o café, os telefonemas constantes pedindo entrevistas e a presença dela aqui e ali, a atração que sua mãe exerce sobre os jovens. "Os amigos mais velhos dela estão na faixa dos 60 anos", diverte-se. A muitos dos que a procuram, ela atende pessoalmente, como cabe às matriarcas. À noite, exposições e concertos, sempre que possível. Mas Ricardo prefere a posição de um observador discreto das horas da artista. Tem, por certo, muitas dúvidas e um respeito a zelar. "O trabalho fica na cabeça dela. Tomie pensa muito antes de ir para a tela", explica, referindo-se aos estudos mínimos, em tela, base para a imagem que vai realizar depois, em grandes dimensões.

O mistério de Tomie? O filho pára para pensar. Além do talento reconhecido, talvez, o fato de ser uma mulher comum, que tinha casa para cuidar e viu seu dom descoberto num estalo. Quem não gostaria de viver essa história? Some-se a visibilidade incomum – são mais de 30 obras públicas, e não somente em São Paulo. O acervo passa pelo Rio de Janeiro, Belo Horizonte. Em Curitiba são duas – uma escultura no pátio do Museu Metropolitano de Arte, no Portão, e outra no Pátio das Esculturas, do MON, e segundo consta, por essa peça a artista não morre de amores. "Queria fazer mais uma escultura pública em Curitiba", confidenciou, às vésperas de inaugurar uma nova obra de grandes dimensões, em Ipatinga, Minas Gerais, dias atrás.

Um segredo entre mãe e filho? Ricardo considera. Permite que se ponha aspas, e diz: "Todas as manhãs ela me chama para ver um trabalho novo que está fazendo. Às vezes, eu estranho muito o que ela me mostra. Alguns dias depois, olho de novo e aí percebo que é algo inovador, que ela está sempre se reinventando. O segredo de Tomie é que avança cada vez mais, mesmo tendo 90 anos. Isso não é incrível?"



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