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Relações carnais - BENJAMIN STEINBRUCH

(03/06/03)


Uma das mais infelizes declarações na área das relações internacionais é atribuída ao ex-chanceler argentino Guido Di Tella, que serviu ao governo do presidente Carlos Menem de 1991 a 1999. Ele disse que a Argentina pretendia manter "relações carnais" com os Estados Unidos.
Nunca se viu na América Latina algo tão explícito em matéria de submissão aos EUA. A declaração não foi apenas um arroubo retórico. O governo Menem adotou o alinhamento incondicional à potência hegemônica do continente como estratégia de política externa.
Por conta disso, Menem esnobou seus antigos parceiros sul-americanos, levou o Mercosul em banho-maria e, num certo momento, parecia sonhar em transformar a Argentina em uma espécie de "Estado associado" aos EUA. Durante a Guerra do Golfo, em 1991, enviou quatro fragatas argentinas para o combate, atitude ridicularizada no cenário internacional.
As relações carnais preconizadas por Di Tella e seguidas por Menem levaram a Argentina a servir como cobaia latino-americana para variadas experiências neoliberais dos anos 90, muitas das quais, a bem da verdade, também adotadas no Brasil. Privatizações a qualquer preço, redução indiscriminada do aparelho estatal, liberalização de importações e dolarização da economia foram algumas das receitas aplicadas por Menem.
Basta olhar para a Argentina que o novo presidente Néstor Kirchner herdou para ver o resultado dessa experiência "carnal". O PIB argentino caiu 10,9% só em 2002 e 25% nos últimos três anos. A taxa de desemprego, de 17,8%, é uma das mais altas do mundo, quase 60% da população está na faixa de pobreza e cerca de 30% são indigentes. Trata-se de um desastre de enormes proporções para um país que já ostentou nível de vida quase europeu e teve uma classe média de alto poder aquisitivo.
De nada valeram os anos de "relações carnais" no momento em que a Argentina precisou de ajuda. O Fundo Monetário Internacional exigiu mais e mais sacrifícios e o Tesouro americano fechou seus cofres e virou as costas para os insistentes pedidos de socorro financeiro. Sem ter como obter recursos, o país foi à moratória e dela não saiu até hoje. Kirchner assumiu o governo com dívidas de US$ 30 bilhões aos organismos multilaterais de crédito e "default" de US$ 60 bilhões com credores privados.
Na semana passada, o representante comercial dos Estados Unidos, Robert Zoellick, esteve no Brasil. O tom das declarações das autoridades brasileiras deixou a agradável sensação de que o Brasil aprendeu a lição do desastre argentino. Em vez de negociações multilaterais da Alca, o Brasil manifestou sua preferência por negociações bilaterais tendo de um lado os parceiros do Mercosul e de outro os EUA.
Zoellick rejeitou a proposta brasileira, mas o resultado foi bom. Terminada a viagem, a despeito da postura insubmissa, o Brasil ganhou rasgados elogios em editorial do "The New York Times". A administração Lula deu mostras de que não se deixará seduzir pela tentação de usar seu atual prestígio internacional para esnobar vizinhos sul-americanos e procurar "relações carnais" diretas com os americanos. E reforçou a idéia de dar prioridade total ao aprofundamento de relações com os parceiros do Mercosul e à abertura de canais com os demais países da América do Sul.
É arrojado o projeto de transformar o BNDES em um banco de desenvolvimento capaz de alavancar o processo de industrialização da América do Sul. Além de financiar o comércio, o banco poderá dar suporte a projetos de infra-estrutura na Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Equador.
Nada há de errado em colocar o BNDES para financiar projetos no Peru, ajudar empresas brasileiras a se instalar ou a comprar ativos na Argentina e no Chile, promover fusão de petroquímicas sul-americanas ou mesmo fomentar a criação de uma megaempresa petrolífera no continente, já batizada de Petroamérica.
Tudo isso só vai contribuir para consolidar a liderança brasileira na América do Sul, à medida que se ampliam os mercados consumidores da região. É um caminho oposto àquele marcado pelas submissas "relações carnais" do período Menem.

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Benjamin Steinbruch, 49, empresário, é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.



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