Por que rejeitar a Alca? HELIO JAGUARIBE
(11/06/03)
Excluindo-se posições marcadamente ideológicas de direita e de esquerda, os debates em meio-de-campo, a respeito de Alca, têm se caracterizado pela ênfase na necessidade de negociação. São, de um modo geral, por todos reconhecidos os aspectos mais negativos do projeto americano, que propõe a supressão de todas as barreiras tarifárias, mas omite a eliminação de suas barreiras não-aduaneiras.
Ocorre, entretanto, que no Brasil e, de modo geral, no restante da América Latina a proteção da economia frente à supercompetitividade de empresas externas se faz apenas por intermédio de taxas aduaneiras. Diversamente, as taxas aduaneiras correntes nos EUA são insignificantes, mas os setores subcompetitivos da economia americana são poderosamente protegidos por barreiras não-aduaneiras, entre as quais avulta a decretação unilateral, pelos EUA, de que são supostamente objeto de dumping todos os produtos, como o aço, produzidos no exterior a custos significativamente inferiores aos americanos.
É também objeto de amplo reconhecimento o fato de que "falaciosos bilateralismos", nos terrenos financeiro e dos serviços, favorecem os EUA em detrimento dos países latino-americanos. Tal ocorre com relação a patentes, a diversos outros serviços e a "compras governamentais". O formal bilateralismo assegurado nesses setores é totalmente falacioso, uma vez que os países latino-americanos neles não dispõem de condições competitivas com os EUA. Tal ocorre, igualmente, em relação à proibição de regulamentação estatal de investimentos estrangeiros.
Ante esses obstáculos a uma equitativa participação de um país como o Brasil no projeto da Alca, tem sido enfatizada a necessidade de negociação. Tratar-se-ia, para o Brasil, de indicar aos EUA os aspectos desequilibrados do projeto da Alca e induzi-los a corrigir tais desequilíbrios.
Assim formulada, a tese da negociação parece razoável. O que está em jogo, entretanto, são duas coisas distintas. A primeira se refere ao que razoavelmente se possa entender como suscetível de negociação. A segunda diz respeito a questões de ordem estrutural, que independem de negociação.
No que concerne à primeira questão, os EUA já declararam, taxativamente, que não se propõem a discutir, no âmbito da Alca, os principais aspectos relacionados com suas barreiras não-tarifárias, alegando que o fariam no âmbito da OMC, sem, entretanto, nenhuma garantia de que, nesse outro âmbito, pudessem vir a aceitar as restrições que lhes são dirigidas. Ante essa posição, é mais que razoável a decisão, por parte do governo brasileiro, de dizer que fará o mesmo com relação às "falaciosas bilateralidades", em matéria financeira e de serviços. No que diz respeito à segunda questão, a matéria não está sendo convenientemente ventilada.
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Creio ter chegado o momento em que é necessário encarar frontalmente a questão: a Alca nos convém ou não?
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Creio ter chegado o momento em que é necessário superar os emolientes diplomáticos e encarar, frontalmente, a questão: a Alca nos convém ou não? Creio, igualmente, que a resposta a essa questão é, inequivocamente, negativa. O projeto da Alca, na verdade, nos é extremamente desfavorável. É desfavorável porque seus aspectos mais negativos não serão jamais suprimidos pelos EUA, simplesmente porque eles constituem uma de suas principais motivações para esse projeto. Acrescente o fato de que as barreiras não-tarifárias do protecionismo americano resultam de leis do Congresso que, por sua vez, decorrem da pressão de poderosíssimos lobbies, que nenhum político americano, com expectativas de eleição ou reeleição, se atreve a enfrentar.
A Alca foi concebida, precisamente, para gerar um regime assimétrico de relacionamento com a América Latina, destinado a compensar os déficits comerciais dos EUA com a Europa e a Ásia. Se a Alca se traduzisse num sistema favorável à América Latina, os EUA não teriam nenhum interesse em promovê-la.
O segundo aspecto da questão, entretanto, tem sido completamente ignorado nas discussões a respeito da Alca. Consiste, simplesmente, no fato de que um dos objetivos principais dos EUA, com esse projeto, é o de eliminar o Mercosul e tudo o que esse sistema, atual e potencialmente, representa como instrumento de autonomização internacional de seus partícipes. Ao estabelecer a supressão de todas as tarifas, o projeto da Alca conduz, necessariamente, à supressão da "tarifa externa comum", que constitui um aspecto central do Mercosul. Este, sem tarifa externa comum, deixa de poder ser um mercado comum no sul do continente. Assim, independentemente de todos os demais aspectos negativos da Alca, o simples fato de esta, necessariamente, conduzir à eliminação do Mercosul, torna-a, para nós, inaceitável.
Essa inaceitabilidade se torna particularmente manifesta no presente momento, quando a eleição de Kirchner, na Argentina, conduz aquele país a um máximo de aproximação com o nosso e torna extremamente positivas, a curto prazo, as perspectivas do Mercosul.
Chegou a hora de o Brasil se dar conta de que tem de rejeitar a Alca, independentemente de utópicas perspectivas negociais. A questão atualmente em jogo não é a Alca. É o que fazer para minimizar os possíveis efeitos negativos de nossa necessária rejeição da Alca. A esse respeito, porém, já se sabe o que, no fundamental, é preciso fazer: reforçar o Mercosul, tornando-o um sistema irreversível e unindo seus partícipes na rejeição à Alca; completar o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina; e ampliar nossas relações comerciais com Europa, Rússia, China e África do Sul, sem prejuízo de um ativo e equilibrado intercâmbio com os EUA.
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Helio Jaguaribe, 80, sociólogo, é decano do Instituto de Estudos Políticos e Sociais, do Rio de Janeiro, e autor de, entre outras obras, "Brasil: Alternativas e Saídas" e "Um Estudo Crítico da História" (ambas pela editora Paz e Terra).
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