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Politizar as Novas Tecnologias (parte II)- livro de Laymert Garcia dos Santos

(02/02/07)


continuação da entrevista com Laymert Garcia dos Santos

Então a ficção científica estava certa?

Laymert: Eu nem trato disso no livro, mas, por exemplo, no início do novo livro de Fukuyama, sobre o futuro do homem, quando ele analisa a forma como a biogenética destrói as bases da democracia (e olhe que ele está pensando a democracia norte-americana...), diz que Huxley estava certo, que estamos de fato às portas de um admirável mundo novo.


A ficção científica adquiriu um interesse novo, e as ciências humanas se ocupam cada vez mais dela, porque se trata de uma literatura de antecipação. E hoje assistimos à antecipação no mercado financeiro, no tratamento das questões ambientais, na tecnociência, na arte e na guerra. Quando Bush desencadeou sua operação não foi contra uma agressão iraquiana -ele antecipou um “possível” ataque aos EUA com armas de destruição em massa. O vocabulário utilizado nesse episódio vincula-se claramente a estratégias de antecipação da realidade.


O escritor Philip K. Dick tem um texto maravilhoso, no qual explica por que escreve ficção científica (reproduzido em “Politizar as Novas Tecnologias): ele diz que não escreve para explorar as tecnologias do futuro, mas para pensar aquilo que a sociedade não é, ou aquilo que ela ainda não é: suas virtualidades e os possíveis tratamentos ou concretizações dessas virtualidades.


Você fala em tecnociência, um termo cujo significado parece sofrer transformações.


Laymert: Refiro-me a um modus operandi que não separa mais a ciência como um conhecimento desinteressado e a tecnologia como aplicação. Ao contrário, a tecnociência já indicia, de modo intenso e imanente, o conhecimento das aplicações, e assim temos a alimentação mútua entre ciência e tecnologia. A tecnociência já se constitui enquanto sistema, e isso é algo relativamente recente. Ela possui sua lógica própria e sua ética é subordinada, de certo modo, à afirmação de que “o conhecimento não tem limite”, ou de que não existe limite externo que possa ser contraposto a esse sistema.


Trata-se, então, de uma não-ética?


Laymert: O cientista dirá que está buscando o bem da humanidade, o bem-estar de todos os humanos e o florescimento da humanidade. Qualquer questionamento é taxado de obscurantismo. É um dogma que não se discute: não se pode sequer sugerir politizar a tecnociência. O dogma é “nenhum limite para a tecnociência”, da mesma maneira que o capital exige. A aliança entre esses dois termos não admite, igualmente, nenhum questionamento.


Esbarra-se, assim, na questão religiosa?


Laymert: Acredito que podemos questionar, isto sim, o que informa a fé na tecnologia. Isso é possível perguntar. Existe uma ambição desmedida por parte da tecnociência, e aí sem dúvida os territórios se misturam.


Seu encontro com Heiner Müller, em Berlim, parece ter sido uma experiência muito forte.


Laymert: Sim, pois foi algo totalmente inesperado. Consegui a entrevista por um estalo, e ela foi realizada na casa dele. Após esse encontro, percebi claramente o caráter não só da divisão entre Oriente e Ocidente, advinda da Guerra Fria, mas também, e principalmente, consegui entender o sentido da História. Müller tinha uma consideração muito forte sobre a História: ele a enxergava como tragédia, ou seja, achava que a maneira como existimos no mundo atual é uma maneira de carregar a História como nossa tragédia. Não temos mais os deuses que decidem os nossos destinos, mas uma História que trama o nosso destino muito além da nossa vontade. Essa seria a nossa tragédia.


E onde se coloca a criação nesse panorama? Como se pode escolher o próprio destino? O futuro do humano, para Müller, não pode ser estabelecido pela tecnociência. Para ele, aquilo que existe de virtual no ser humano, o que ainda poderá ser realizado, deverá acontecer ao largo da História, escapando dela, ou desvencilhando-se dela.


Qual seria o agente desse processo à margem da História?


Laymert: Ora, trata-se daquilo que está vivo e ainda não foi capturado. Seria aquilo que existe de virtual no humano, mas ainda não pôde ser colonizado pela História, ou pelas forças da História. Isso é escapar da História, mas de certa maneira também significa construir outras possibilidades de História.


Seriam instâncias mais sutis do que aquelas já identificadas e armazenadas, novas formas de resistência?


Laymert: Exatamente. Onde estão as resistências de hoje? Estão, também elas, no campo das virtualidades, e é aí, justamente, que se encontram mais ameaçadas, uma vez que a aliança entre o capital global e as tecnociências projetam a colonização do virtual. O embate se dá no próprio lugar onde se encontra a fonte da resistência, onde se encontra a vida.


Por isso, o que existe atualmente é o embate entre a sobrevivência e a vida. Os que estão trabalhando para se estabelecer como aqueles que sobreviverão no futuro, aqueles que buscam a supra-existência, encontram-se em uma linha de tensão com aqueles que querem simplesmente viver, e não criar uma sobrevida. Porém, estes portam virtualidades que são objeto de apropriação por parte daqueles que querem sobreviver. Basta ler o livro de Susan George, “O Relatório Lugano”, para entender isso.


Você tem viajado bastante para conferências e seminários, no Brasil e no exterior. Vê alguma sociedade comportar-se de forma criativa para superar esse impasse global?


Laymert: Não vejo isso. Na Europa, a questão se coloca de forma diferente. Nosso foco de visão é diverso porque somos os perdedores desse processo de aceleração, embora não queiramos reconhecê-lo. Fazemos um esforço gigantesco para nos mantermos no trem enquanto nacional, como um todo. Por outro lado, a sociedade deles está toda no trem.


Desde essa perspectiva, o positivo e o negativo são percebidos de forma diferente. Para eles, não faz sentido a frase “Nós somos todos descartáveis”, do sub-comandante Marcos, pois aqueles que se encontram no interior do trem em movimento não se julgam de forma nenhuma descartáveis. Isso faz toda uma diferença, e é preciso entender que eles raciocinam desde um outro ponto de vista.


*Alvaro Machado
É jornalista, colaborador da "Folha de S. Paulo", autor de "A Sabedoria dos Animais" (ed. Ground), tradutor de “A Linguagem dos Pássaros” (ed. Attar) e organizador de "Aleksandr Sokúrov" (ed. Cosac & Naify) e de "Mestres-Artesãos" (ed. Sesc-SP). Coordena o site-catálogo da editora Cosac & Naify (www.cosacnaify.com.br).


Autor: Alvaro Machado / Revista Trópico Edição: Avulso



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