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O intelectual sob fogo cruzado (EDWARD SAID)

(06/04/03)


O intelectual sob fogo cruzado
Em dois livros recém-lançados no Brasil, Edward Said reflete sobre cultura e política

Benjamin Abdala Junior


Professor da área de Estudos Comparados da USP e autor, entre outros títulos, de FRONTEIRAS MÚLTIPLAS, IDENTIDADES PLURAIS
Divulgação

Edward Said alia experiência pessoal a uma reflexão teórica que une história, sociologia, crítica literária e musical


Cultura e política
Tradução Luiz Bernardo Pericás
Boitempo
176 páginas
R$ 29

Reflexões sobre o exílio e outros ensaios
Tradução Pedro Maia Soares
Companhia das Letras
352 páginas
R$ 39,50

Duas novas e bem-cuidadas publicações brasileiras, de autoria de Edward W. Said, um dos principais críticos da cultura da atualidade, trazem novas reflexões sobre o imperialismo, a paz e o papel do intelectual, destacando o conflito no Oriente Médio: Cultura e política e Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Autor de importantíssima obra crítica, imbricando história, filosofia, política, sociologia, crítica literária e musical, Said teve anteriormente publicados no Brasil os livros Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, Cultura e imperialismo e Elaborações musicais.

Comentarista político e crítico literário respeitado nos Estados Unidos e um dos expoentes da cultura palestina, tendo sido o seu nome já indicado para o Prêmio Nobel da Paz, Edward W. Said nasceu em Jerusalém, num bairro cristão, de família anglicana. Seu pai havia adquirido a cidadania norte-americana. Em 1948, sua família foi obrigada a refugiar-se no Cairo, após a ocupação da Palestina por Israel. Dirigiu-se em seguida, aos 17 anos, para os Estados Unidos, estudou em Princeton e Harvard, vindo a tornar-se professor de Literatura Comparada da Universidade de Columbia.

Há mais de 40 anos nos EUA, Said, apesar de sua cidadania norte-americana, considera-se no exílio, em face de suas origens palestinas. Essa duplicidade lhe confere uma visão complexa, que acaba por favorecer-lhe uma perspectiva estrangeira e insubmissa, distanciada e crítica.

Como o próprio Said salienta, a sociedade norte-americana é complexa, com choques de interesses diversos, para além do consumismo fácil em torno da televisão e das redes de fast-foods. Há, contudo, uma outra América que se manifesta comunitariamente contra a injustiça e discriminação. São comunidades transnacionais, de interesses globais, como os movimentos dos direitos humanos, das mulheres, das crianças, antiguerra, etc. Em relação à intelectualidade, Said propugna atitudes empenhadas e é enfático na crítica ao pensamento conservador que aparece nas teses sobre o “fim da história” (Francis Fukuyama) e do “choque das civilizações” (Samuel Huntington), discursos que, distantes da realidade, orquestram a mídia, procurando eliminar diferenças que, em face da mundialização, existem também dentro dos EUA e não apenas fora deles.

A partir desse locus dinâmico e híbrido, Said organiza os textos reunidos nestas duas coletâneas de ensaios. Cultura e política, como explicita seu organizador, Emir Sader, reúne artigos que permitem a reflexão sobre a articulação entre a teoria e a prática do intelectual. São textos recentes, publicados entre 1998 e 2002, com ênfase no problema palestino e uma parte inicial voltada para questões de literatura e cultura. Se o autor é implacável na condenação do etnocentrismo de Israel, ele não deixa de condenar, com igual veemência, o terrorismo palestino. “A paz não poderá existir sem igualdade: este é um valor intelectual que necessita desesperadamente de reforço e reiteração”, diz. Para ele, nada justifica a exclusão e a violação dos direitos humanos. Conseqüência: foi acusado de anti-semita por israelenses e judeus de direita, embora suas críticas associem-se às feitas por seu amigo de origem judaica Noam Chomsky. Seus livros foram proibidos por Yasser Arafat, que também foi atingido por suas críticas. Said defende a autodeterninação para ambos os povos, direitos iguais para ambos, nenhuma ocupação, nenhuma discriminação, nenhum assentamento, nenhuma forma de apartheid.

Embora as várias organizações sobre direitos humanos (inclusive a Carta da ONU) declarem o direito de resistir a qualquer povo, por quaisquer meios necessários, a uma ocupação militar, e concederem aos refugiados o direito de retornarem a seus lares, Said considera que o terrorismo suicida praticado por homens-bomba não serve a nenhum propósito político ou ético. O terror existe dos dois lados: o do suicida e o de quem bombardeia com tanques, caças e helicópteros: “O que é ruim em todo o terror é que ele vem associado a abstrações religiosas e políticas e mitos redutores que tendem a se afastar da história e da compreensão. É aqui que a consciência secular tem de se fazer sentir, seja nos Estados Unidos, seja no Oriente Médio. Nenhuma causa, nenhum deus, nenhuma idéia abstrata pode justificar o massacre de inocentes.”

O resultado é que, de um lado, proclama-se uma crescente islamização para fazer face às ameaças norte-americanas e, de outro, tem-se a mobilização de Bush, Blair e seus parceiros para uma guerra indeterminada contra o terrorismo. Em contraposição à força dos fluxos comunicacionais das enormes corporações multinacionais, colocam-se intelectuais independentes, que ainda de forma incipiente procuram se articular supranacionalmente. Diante dessa situação impõe-se a necessidade de um “intelectual coletivo”, designação que Said empresta de Pierre Bourdieu para se referir a indivíduos que trabalham comunitariamente, somando-se suas pesquisas às de outros indivíduos, em razão da participação comum nos mesmos assuntos. Assim o pensamento crítico, em constante reconstrução, afasta-se da imagem antiga da singularidade do mestre-pensador, que se presume falar em nome de quem não tem voz. Cabe ao pensamento crítico reconstruir áreas de coexistência em lugar de campos de batalha.



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