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O Brasil de Vieira - Livro

(15/07/03)


Coletânea seleciona cartas que padre escreveu sobre invasão holandesa e escravização dos índios
ADMA MUHANA - Jornal do Brasil

Cartas do Brasil
Padre Antônio Vieira
Org. João Adolfo Hansen Hedra
665 páginas R$ 59


O mais novo volume de escritos do padre Antônio Vieira reúne suas cartas sobre o Brasil. São textos que tratam de temas importantes como a 'Carta Ânua' de 1626, em que Vieira relata ao geral da Companhia de Jesus a invasão da Bahia pelos holandeses; as diversas cartas remetidas das missões do Maranhão e do Pará, em que oferece um vívido retrato dos hábitos de pesca, vestuário, guerra, festas e moradia dos indígenas do Norte, e também suas diligências a fim de que não fossem injustamente escravizados; uma epístola coletiva dirigida 'aos judeus de Ruão'; e a tão famosa 'Esperanças de Portugal', carta na qual propõe que, segundo as profecias, o rei D. João IV iria ressuscitar para implantar o Quinto Império, isto é, o reino de Cristo na Terra, e que foi motivo para seu processo no Tribunal do Santo Ofício em Coimbra entre 1663 e 1667. As cartas são relativas a 'temas do Estado do Brasil e do Estado do Maranhão e Grão-Pará', conforme registra o estudioso João Adolfo Hansen, organizador e autor da alentada introdução que abre o livro.

Toda edição de obras de Vieira deve ser saudada como um evento editorial necessário, principalmente quando precedida por um valioso estudo como este, que situa as ocasiões de redação das cartas vieirianas segundo grupos de destinatários. Esta é uma ordenação editorial que responde de maneira arguta aos pressupostos da arte epistolar seiscentista - que tem por princípio estrutural a tipificação dos destinatários segundo seus estados sociais e a posição do remetente relativamente a eles. Deste modo, o organizador evita a linearidade de uma cronologia objetiva e anônima para destacar, do conjunto das mais de 700 cartas de Vieira conhecidas, um grupo que reúne suas questões com os irmãos da Companhia de Jesus, outro que engloba suas relações com a nobreza, e outro ainda que fornece um apanhado de seus contatos com membros da sociedade colonial. Com isso, é possível acompanhar a linha de assuntos que Vieira persegue, por exemplo, com o padre André Fernandes, destinatário primeiro da carta 'Esperanças de Portugal', ou com o fidalgo Duarte de Macedo, seu amigo por uma vintena de anos - tarefa difícil caso o leitor interessado dispusesse apenas das edições anteriores das Cartas.

A introdução é valiosa ainda por colocar em movimento na obra epistolar de Vieira perspectivas de análise que vêm sendo desenvolvidas por João Adolfo Hansen, nas quais evidencia a articulação retórica que rege os diversos gêneros discursivos até bem entrado o século 19. De modo amplo, intercepta essa articulação retórica com as condições políticas e religiosas vigentes no século 17 no Brasil, salientando, em sua introdução, que a interpretação das cartas de Vieira deve pressupor sempre a política católica que ele pratica, na condição de cortesão prestigiado junto à nobreza e, ao mesmo tempo, de religioso da Igreja Católica em tempos de contra-reforma, o que o faz subordinar obediente e virtuosamente ao rei e ao papa todas as suas atuações públicas e privadas - das quais as cartas são uma expressão.

Uma questão a se pôr é que, como as Cartas do Brasil só podem ter por critério de 'Brasil' os períodos em que Vieira esteve numa de suas diversas regiões, ou a menção de topônimos brasileiros em suas cartas, ficamos sem saber qual proporção das cartas de Vieira disponíveis sobre o Brasil encontra-se aqui. Digo isso porque, se levarmos em conta a justificativa de que são cartas que tratam de 'temas do Estado do Brasil e do Estado do Maranhão e Grão-Pará [...]além de outras, que não os referem diretamente, mas que os pressupõem como partes necessárias para a realização da profecia do Quinto Império', não compreendemos como estão ausentes desta edição certas cartas fundamentais. Recordo algumas, escritas do Maranhão ao padre André Fernandes, como a de 21 de maio de 1653, da qual só se edita um pequeno extrato, sem menção de lugar (editada em versão completa, em apêndice, no tomo III, páginas 719 a 722 da edição das Cartas, de João Lúcio de Azevedo); ou, mais incompreensível ainda, aquelas à rainha D. Luísa de Gusmão, de 29 de abril e de 28 de novembro de 1659, as duas datas prováveis de redação da carta 'Esperanças de Portugal', e que a esta se referem alusivamente, por isso tão preciosas. Aliás, a ausência de um sumário prejudica grandemente a consulta do leitor ao conjunto das cartas que aqui se publicam.

Além disso, há um problema incontornável de concepção editorial. As 176 cartas publicadas são extraídas das 711 Cartas do Padre António Vieira, editadas por João Lúcio de Azevedo em Portugal entre 1925 e 1928, e reeditadas em 1970 e em 1997 pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, de Lisboa. Todavia, além do texto das cartas (atualizando-se somente a grafia), retirou-se da publicação de Lúcio de Azevedo todas as notas que as acompanham. É certo que tal informação pode ser deduzida da página de créditos dessas Cartas do Brasil, e que cada nota traz ao lado a indicação '(JLA)'. No entanto, em termos editoriais, pergunto-me sobre a licitude de tal procedimento.



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