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Dreifuss (falecido em 4 de maio/03) trouxe novo enfoque ao golpe de 64

(11/05/03)


Cientista político, que morreu dia 4, analisou em livro a atuação das elites civis no episódio

LEONARDO TREVISAN

O cientista político René Dreifuss, que morreu no dia 4, aos 58 anos, escolheu uma frase de Umberto Eco "somente os poderosos sabem sempre, com muita clareza, quem são seus verdadeiros inimigos" para nortear a investigação de seu livro A Internacional Capitalista sobre as artimanhas mundiais do que chamou de "elite transnacional". A escolha dessa epígrafe foi um tipo de confissão. A rigor, Dreifuss dedicou seus longos anos de pesquisa histórica para essa tarefa: dissecar e exibir a competente consciência de classe revelada por quem exerce o poder, tanto para se organizar como para controlar ou derrotar seus inimigos.

A obra em que ele mais cumpriu essa tarefa foi o livro que deixou famoso esse uruguaio de nascimento, mas morador no Brasil em mais da metade da vida, 1964: A Conquista do Estado - Ação Política, Poder e Golpe de Classe, editado em 1981, um best seller (de verdade) da ciência política brasileira.

A contribuição essencial de Dreifuss sobre 64 está na percepção - o livro foi escrito na segunda metade da década de 70 - de que a idéia de "golpe militar" era incompleta para explicar aquele ponto de inflexão na História brasileira: outros atores foram tão ou mais importantes que os fardados.

Mais que um movimento civil-militar, a Revolução de 31 de março (quantos ainda lembram que o nome era esse?) foi, para Dreifuss, "um movimento eminentemente político". De modo pioneiro, um autor de esquerda, usando o referencial teórico de Gramsci, reconheceu que 64 foi resultado de uma ampla articulação dentro da própria sociedade brasileira. Para Dreifuss, a presença de "intelectuais orgânicos" bastante competentes nessa articulação explicavam mais o sucesso do movimento do que qualquer "ronco dos motores dos tanques".

Esses "orgânicos" queriam assumir o Estado para modernizá-lo, para aumentar a capacidade produtiva do País visando, óbvio, integrá-lo de fato à ordem capitalista internacional. Dreifuss foi o primeiro a exibir a importância dos que não eram "vaca fardada" - na curiosa autodenominação do general Olímpio Mourão Filho - e "fizeram 64".

Para confirmar essa interpretação da "conquista do Estado" por uma elite mais pensante do que guerreira, Dreifuss usou o que chamava de a "papelada" do Ipes, o mitológico Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, uma entidade fundada em novembro de 1961, em um conjunto de 13 salas no 27.º andar do Edifício Avenida Central , no centro do Rio. Em São Paulo, o Ipes era menor, apenas dois escritórios, e existiam representações do instituto em Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba. Muita gente esteve naquelas salas, desde técnicos muito competentes - reunidos no Grupo de Estudos e Doutrina - até editores, publicitários, padres, empresários, de todos os tipos e calibres.

Dreifuss não contabilizou mas, talvez, quem menos freqüentou o Ipes foram militares. Dessa papelada o então professor da Universidade Federal de Minas Gerais redesenhou o mapa de atuação das elites civis na construção do movimento de 64. A singela explicação sobre a origem da "papelada" - caixotes encontrados pelo autor no Arquivo Nacional - sempre foi repetida por Dreifuss. Por que esses caixotes, com tudo que o Ipes fez e tramou, não incluíam por exemplo os explosivos documentos relativos à atuação do general Golbery do Couto e Silva permanece um mistério. Aliás, quanto a militares, Dreifuss também foi pioneiro em uma interpretação menos dogmática da História: a papelada do Ipes confirmava que não havia só moderados e "linhas dura" entre os fardados.

O autor de 1964: A Conquista do Estado preferia dividir os militares em um triângulo formado por "ipesianos" (Golbery à frente), extremistas e "tradicionalistas" (Amaury Kruel, por exemplo). Fica a dúvida quanto ao lugar nessa classificação dos nacionalistas, por exemplo o general Albuquerque Lima - o derrotado por Médici na "eleição" de 1969. A lacuna é menos importante do que a ruptura com a análise simplista sobre o pensamento político entre os militares no poder que Dreifuss de certa forma inaugurou.

Quando o livro foi publicado alguns o criticaram falando em "visão policialesca" do texto. Afinal, 64 ainda não tinha completado sequer duas décadas quando o livro saiu e certos visitantes daquelas salas incomodaram-se com as menções do livro. O tempo e as mudanças no espectro ideológico do mundo incumbiram-se de apagar esses melindres. De fato, a melhor resposta às criticas sempre foi a seriedade de pesquisa que marcou o trabalho de Dreifuss por décadas. Herdeiro de sólida tradição de pesquisa histórica inglesa, referendava suas obras em centenas de páginas de notas e transcrição de documentos. Formado em História pela Universidade de Haifa, em Israel, mestrado pela Universidade de Leeds, Dreifuss, doutorou-se pela Universidade de Glascow com a tese State, Class and the Organic Elite: The Formation of the Entrepeneurial Order in Brazil, 1961-1965, que foram as 300 e poucas páginas de ponto de partida das mais de 800 do 1964: A Conquista de Estado.

O Brasil tem uma frágil tradição de revisão historiográfica. O refluxo dos militares do eixo de poder e o natural desaparecimento dos atores civis envolvidos empurraram o movimento de 64 para uma espécie de limbo da memória. A relevância da obra de Dreifuss está muito mais na análise do método de articulação política do que na lista de atores envolvidos.

A recente publicação dos dois volumes sobre o ciclo militar de Elio Gaspari - um roteiro importante para interpretação daquele tempo - reabre a obrigatória hipótese de revisão historiográfica desse período. O professor Dreifuss seria um interlocutor ideal desse debate. A morte chegou antes.

Prejuízo sério para os que ainda acham que pensar a História não deve permanecer restrita aos que "organicamente" exercem o poder.



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