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Canudos, nossa guerra sem fim

(12/04/03)



Poemas escritos ao calor da hora e relatório de órfãos aumentam bibliografia

Regina Abreu


Professora de Antropologia Cultural da UNIRIO e autora de O ENIGMA DE OS SERTÕES

CANUDOS, HISTÓRIA EM VERSOS
Manuel Pedro das Dores Bombinho

Imprensa Oficial-SP/Edusp/Hedra

344 páginas

R$ 38

HISTÓRICO E RELATÓRIO DO COMITÊ PATRIÓTICO DA BAHIA (1897-1901)

Lélis Piedade

Coordenado por Antonio Olavo

Portfolium Editora

CANUDOS: XILOGRAVURAS

Adir Botelho

Escola de Belas Artes da UFRJ


Nestes negros tempos quando a guerra corre o risco de banalização, torna-se oportuna a leitura de dois livros sobre aquele que, sem dúvida, foi o mais sangrento conflito interno da República brasileira: a guerra de Canudos. O primeiro, Canudos: história em versos, de Manuel Pedro das Dores Bombinho, é uma raridade, um poema com 5.984 versos escritos no calor da hora. O autor, um poeta sergipano, nascido entre os anos 1860 e 1870, acompanhou, como fornecedor de víveres, os combates do Exército brasileiro contra o Arraial de Antonio Conselheiro, da 4ª expedição até o final da guerra, em outubro de 1897. O livro foi organizado pelo pesquisador Marco Antonio Vila após precioso trabalho de recuperação do texto, uma vez que os originais desapareceram misteriosamente da Biblioteca Pública de Sergipe. Os versos são impactantes, evocando o aspecto essencialmente trágico do qual nenhuma guerra pode escapar. Bombinho chega a se referir à matança em Canudos como holocausto, narrando em detalhes cenas expressivas, como a da morte de Antonio Conselheiro, e profetiza a notoriedade histórica que o beato viria a alcançar nos anos que se seguiram ao seu martírio: 'O segredo morreu com aquele velho/ Que ali acabou de padecer/ Desaparece do mundo em holocausto. Na história torna ele reviver.'

Requintes de crueldade não faltaram, narra Bombinho em seus versos, indagando por que motivo soldados republicanos, já ao final da guerra, executavam sumariamente prisioneiros. 'Crueldade inaudita e monstruosa/ foi aquela que ali se viu então/ Os jagunços eram todos degolados/ Não faziam parte da Nação.'

Em outros versos, Bombinho sublinha o heroísmo dos jagunços. Um conjunto de versos narra a história de uma corajosa conselheirista que preferiu morrer a abandonar seus ideais: 'Uma mulher separada do marido/ Prevendo que ele era degolado/ Disse como heroína sem temer/ Executem a mim sem ter cuidado./ Sou conselheirista e quero sim/ Morrer sem ser republicana./ Degolem não é vossa missão?/ Degolem a uma heróica baiana./ E foi executada a pobre moça/ Para ela não houve remissão/ Eram assim tratados os jagunços/ Que procuravam na força salvação.'

Relembrar a guerra de Canudos nos versos de Bombinho é quase um dever cívico. Ainda hoje, essa guerra resta inconclusa tamanha tem sido nossa perplexidade diante dos chamados fatos históricos. Como foi possível que uma elite intelectual e política, no auge da implantação do regime republicano, tenha-se deixado cegar a ponto de comandar campanha militar contra uma população de despossuídos numa região inóspita e sem recursos? O outro lançamento sobre o evento trágico de Canudos é o resultado de minucioso trabalho de organização do pesquisador baiano, Antonio Olavo: Histórico e relatório do Comitê Patriótico da Bahia (1897-1901), coordenado por Lélis Piedade. O livro focaliza a etapa que se seguiu aos anos do conflito armado. Trata-se de edição revista e aumentada com textos do pesquisador Antonio Olavo, relativa à publicação de 1901 sobre o trabalho do Comitê Patriótico da Bahia, de autoria de Lélis Piedade, secretário do Comitê e correspondente do Jornal de Notícias na ocasião. Os relatos do Comitê são surpreendentes, evidenciando que o final da guerra deixou como marca o extermínio indiscriminado dos prisioneiros. A senha para este tratamento, conhecido como 'degola', foi dada pelo ministro da guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt que, em Monte Santo, ao receber alguns conselheiristas prisioneiros, mandou dizer ao general Artur Oscar que 'ele bem sabia que ele, ministro, não tinha onde guardar prisioneiro!'. Uma das conseqüências foi a repentina orfandade de crianças, filhos dos prisioneiros degolados, que passaram a perambular pelos sertões e que teriam permanecido abandonadas à própria sorte se a piedade e o altruísmo do Comitê Patriótico da Bahia não surgissem pronta e energicamente em favor deles. Fundado em Salvador a 28 de julho de 1897, no período em que a 4ª expedição contra Canudos viveu talvez o seu pior momento, com graves dificuldades no enfrentamento com os conselheiristas, o Comitê Patriótico da Bahia surgiu, como nos ensina Antonio Olavo, 'como uma chama teimosamente acesa na área da penumbra do pós-guerra, a lembrar a todo instante das viúvas e dos órfãos com uma atuação generosa e solidária'. As reuniões regulares do Comitê se realizaram até 24 de março de 1898 e, na última ata, seu secretário, Lélis Piedade, assinala orgulhoso que o Comitê cumprira seu dever e que teria 'feito mais relativamente do que os próprios poderes públicos que dispunham de fortes elementos'.

Nos dias de hoje, a publicação do Relatório do Comitê Patriótico da Bahia responde a um duplo anseio. Por um lado, trata-se de um documento histórico imprescindível para os pesquisadores de Canudos, possibilitando melhor compreensão da memória dos vencidos que a história oficial eclipsou. Por outro, parece-me oportuno, hoje mais do que nunca, recuperar a memória de sociedades de auxílio mútuo movidas pelo espírito de altruísmo e solidariedade. Em momentos da História em que se torna impossível evitar ou frear os impulsos de guerra, é um bom alento rememorar ações de fraternidade e devoção desinteressada. Como assinalou Walter Benjamin, é no ato de revisitar experiências bem-sucedidas e motivadas por valores e crenças com os quais nos identificamos que nos tornamos mais ricos em possibilidades e esperanças.

Dentre os lançamentos sobre o tema, vale destacar ainda o livro de xilogravuras de Adir Botelho, Canudos, editado pela Escola de Belas Artes da UFRJ. O livro reúne 120 gravuras que ocuparam a imaginação do artista plástico durante duas décadas.

[12/ABR/2003]



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