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CHE NA ESTRADA

(01/05/04)


Por Marcelo Lyra, para o Valor

Os atores Rodrigo de la Serna (seu personagem é o contraponto cômico) e Gael García Bernal, que interpreta o líder guerrilheiro
Um dos filmes mais aguardados do ano por críticos e especialistas em cinema estréia na próxima sexta-feira: "Diários de Motocicleta", de Walter Salles. Ele é um dos mais importantes diretores brasileiros da atualidade, e concorreu ao Oscar por "Central do Brasil", mas o filme desperta interesse principalmente por ser a biografia de Ernesto Guevara, mais conhecido como Che Guevara, um dos líderes da revolução cubana, ao lado de Fidel Castro e talvez o maior ícone da esquerda latino-americana. "Diários..." não é uma biografia qualquer, mas sim o relato de um pequeno período da juventude de Guevara. Mais precisamente uma viagem de 8 mil quilômetros por toda a América Latina, que ele fez aos 23 anos, de motocicleta, na companhia de um amigo, em 1952. "Queria mostrar a pessoa comum que existia por trás do mito, um jovem como outro qualquer de sua idade, mas já com os ideais que o tornariam um revolucionário", explica Walter Salles.

A viagem por si só, sem a conotação política, valeria o filme. Guevara e o então biólogo Alberto Granado, que depois seria ministro da Saúde em Cuba (onde vive até hoje), percorreram o interior de países como Chile, Peru, Equador e Colômbia, conhecendo gente do povo, mineradores, trabalhadores rurais etc., em sua maioria descendentes dos Incas, que dominaram a América por centenas de anos, até serem dizimados pelos colonizadores espanhóis nos séculos XVII e XVIII.

As paisagens são deslumbrantes. O deserto da Patagônia, a Amazônia peruana e, principalmente, a Cordilheira dos Andes, essa espinha dorsal do Continente, que se estende por 7 mil quilômetros, muitas vezes intransponíveis e de rara beleza, por alguns momentos chegam a ofuscar o espectador. Mas a pobreza e a miséria dos moradores logo chamam para a realidade.

Cartão postal à parte, o que mais atraiu Walter Salles nessa viagem foi a gênese do líder revolucionário que o mundo conheceria depois. O contato com pessoas simples, exploradas pelas mineradoras ou multinacionais, e a situação desumana dos doentes peruanos empurrariam Guevara definitivamente para a causa dos trabalhadores. Quatro anos iria a unir-se aos cubanos exilados no México que se preparavam para invadir Cuba. Mas a preocupação de Walter é não endeusar o mito, mas sim torná-lo mais humano. "O que eu gostaria é que, depois de ver o filme, as pessoas se interessassem por ler o que ele escreveu, e não por comprar aquela famosa camiseta com seu rosto estampado", explica.

As viagens de Walter Salles e sua equipe, tanto para as filmagens quanto as anteriores, em busca de locações, também renderiam um filme. A exemplo do que ocorreu com Guevara 50 anos antes, Salles também se deixou influenciar pelo que viu, a ponto de, durante as filmagens, ignorar parte do roteiro e improvisar muito, incorporando personagens que encontrou pelo caminho. "Este é um filme que caminha na confluência entre a ficção e o documentário", diz Salles.

Assim, durante a viagem, Walter conheceu por acaso a cerimônia da coca, na qual moradores dos Andes mascam folhas da planta de onde se extrai a cocaína, que tem efeito estimulante, um ritual que faz parte da cultura da região desde o tempo dos Incas. Fascinado, ele incorporou a cena, filmando de forma documental a participação dos atores na cerimônia dos moradores locais. Em outro momento, um jovem guia inca mostrou-lhes a cidade de Macchu Pichu, explicando que os espanhóis destruíram boa parte das construções históricas, arrematando: "Depois dos incas, vieram os inca-pazes". O menino e a frase foram incorporados ao filme, e aparecem dizendo a mesma coisa aos jovens viajantes.

Curiosamente, Ernesto Guevara, em seu livro que deu origem ao filme, chamado "Diário de Viagem", que está sendo relançado agora, conta que para ele, o princípio geral da viagem era a improvisação. Alberto Granado, companheiro de viagem, havia feito um detalhadíssimo plano, calcado em um mapa da América, segundo o qual a viagem poderia se cumprida em quatro meses. Mas Guevara queria conhecer mais cada lugar, conversar com pessoas e acabava estendendo a estada. O traçado inicialmente previsto para 8 mil quilômetros em quatro meses, chegaria a 12 mil em mais de oito meses. Para piorar, a velha moto não resistiu à subida da Cordilheira. Com pouco mais de 4 mil quilômetros percorridos, ficou pelo caminho, sendo vendida como sucata. O verdadeiro Granado, aos 83 anos de idade, que veio ao Brasil a convite dos produtores para o lançamento do filme, falou sobre esse episódio. "Sou de Córdoba e cresci ouvindo tangos. Não pude deixar de chorar quando fui obrigado a me separar da velha moto, companheira de tantas viagens".

A viagem culmina com a chegada da dupla ao leprosário peruano. Guevara estava prestes a se formar em medicina antes de viajar e sua especialidade era justamente a hanseníase. Lá a dupla trabalhou por três semanas, impressionando médicos e voluntários locais pela humanidade e dedicação com que tratavam os doentes. Dentre as mudanças que implantaram estava o abandono do uso de luvas no tratamento, já que a lepra não é contagiosa quando em tratamento.

De volta à Argentina, Guevara formou-se em medicina e pouco depois, em 1954 iniciou outra viagem pela América Latina, que terminaria na Guatemala. Ele queria conhecer o país porque sabia que, nessa época, havia um governo de esquerda, que havia tomado o poder com o fim da Segunda Guerra Mundial e, sete anos depois, implantado uma reforma agrária. Naquele ano, um golpe militar apoiado pelos EUA derrubou o governo e obrigou Guevara a refugiar-se no México. Lá conheceu e tornou-se amigo de Fidel Castro, que preparava um pequeno exército para invadir Cuba. Nessa época, recebeu o apelido de Che, por usar com freqüência essa gíria argentina (também usada no Brasil pelos gaúchos), que não fazia o menor sentido para os cubanos. Daí para frente, tornou-se o mito que o mundo conhece.

Embora seja considerado brasileiro, por conta do diretor e do montador (Daniel Rezende, indicado ao Oscar por "Cidade de Deus"), "Diários de Motocicleta" é na verdade uma co-produção anglo-francesa. O South Four Pictures inglês é responsável por cerca de 70% do orçamento e boa parte do restante veio da produtora francesa Tu Vais Voir Productions. Há ainda pequenas participações da Argentina, Brasil, Peru e EUA. Assim, de certa forma é fiel ao espírito de Che, que se considerava cidadão do mundo.

A dupla de atores centrais também é internacional. Gael García Bernal ("Amores Brutos"), é mexicano, e Rodrigo de la Serna, argentino. Isso deve facilitar a carreira do filme nesses dois países. Independentemente disso, eles estão ótimos. A bem da verdade, quando Salles anunciou que havia escolhido Gael para o papel de Che, muita gente estranhou. O líder revolucionário é visto nas fotos como um homem alto e relativamente forte, ao passo que o ator é baixinho. Houve quem acusasse o diretor de ter cedido a apelos comerciais. Mas as telas dariam razão a Salles. Gael exala uma honestidade algo ingênua e idealista que cai como uma luva no que deveria ter sido o jovem Guevara. "Li várias vezes os diários de Che e procurei em mim mesmo características dele, para compor o personagem", explica Gael.

Já Rodrigo de la Serna, apesar de ser um bom ator, tem um personagem desenhado para ser um contraponto cômico, alívio humorístico para a trama. A idéia até funciona, mas esse tipo de dupla é um tanto manjado e soa mais como clichê. Em compensação, a câmera do francês Eric Gautier empresta ao filme uma forte carga de vitalidade. Ele opta por usar a câmera sempre na mão e luz natural mesmo nas cenas noturnas, o que deixa as imagens um tanto granuladas. Assim, confere ao filme um aspecto meio sujo, bastante fiel ao cotidiano pobre dos povoados visitados. Eric usou uma câmera de Super 16 milímetros, que é mais leve e prática. A ampliação do negativo para 35mm (necessária por ser o padrão dos projetores de cinema) também contribui para a granulação das imagens. Em compensação, permitiu cenas feitas na garupa da moto com enorme grau de realismo. "A câmera não procura enquadrar os personagens, mas sim segui-los, daí a opção pela agilidade da câmera leve", explica Salles.

É um filme de estrada, uma espécie de "Sem Destino" latino, com preocupação social. Lembra ainda "E Tu Mamá También", estrelado por Gael, que também tem boa parte da ação na estrada. Mas a maior referência é sem dúvida "A Mocidade de Lincoln", que John Ford fez em 1939, com Henry Fonda no papel principal. Ford tinha pelo ex-presidente americano uma admiração semelhante à de Salles por Che. Ambos realizaram filmes afetuosos sobre a vida de mitos antes da fama, embora a bem da verdade, Ford carregue um pouco mais nas tintas da mistificação.

O filme de Salles foi indicado para concorrer à Palma de Ouro no Festival de Cannes, que começa em maio. Por coincidência, Gael Garcia Bernal estará no festival francês com outro filme, "La Mala Educación", de Pedro Almodóvar, exibido hour concours, no qual interpreta um travesti. "Não temos aspiração a vencer o festival. Todos nós da equipe estamos felizes em participar", garante Salles.




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