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A nova face do trabalho - por Denise Neumann

(12/09/03)


O Brasil fez uma profunda reforma nas relações de trabalho e no emprego nos anos 90. A sexagenária Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) - promulgada em 1º de maio de 1943 - vale hoje para 24 milhões de trabalhadores ou 31% do total de ocupados. Sem precisar passar pelas difíceis votações que exigem a aprovação de dois terços do Congresso, contudo, a legislação foi para baixo do tapete e a ocupação mudou de cara. Ela ficou mais escassa, mais pobre, menos segura, mais informal e - quase como uma ironia - mais escolarizada.

Entre 1989 e 2001, o saldo de ocupações geradas e postos de trabalho fechados foi positivo em 11,8 milhões de vagas, segundo comparação entre os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de cada um dos dois anos.

Nessa conta de perdas e ganhos, foram fechadas 4,3 milhões de ocupações para pessoas com menos de três anos de estudo. E aumentaram em 9,3 milhões as vagas para pessoas com oito a 14 anos de escolaridade e em mais 2,9 milhões aquelas vagas destinadas a pessoas com 15 anos ou mais de estudo.

Este aumento de vagas de maior escolaridade seria um "céu de brigadeiro" sem os "poréns". O principal deles é que a exigência de escolaridade aumentou, mas o salário foi rebaixado. Olhadas pela ótica do salário, as mesmas 11,8 milhões de vagas representam a diferença entre o fechamento de 7,7 milhões de empregos que pagavam mais de dois salários-mínimos e o aumento de 19,5 milhões de ocupações que pagam até dois mínimos.

Assim, a ocupação no Brasil ficou mais pobre, porém mais exigente. "Há um tremendo descompasso. As exigências para o preenchimento de uma vaga aumentaram, mas sem contrapartida do salário. O trabalhador está mais escolarizado e recebendo menos", observa o economista Márcio Pochmann, especialista em economia do trabalho e hoje titular da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) da cidade de São Paulo.

O saldo positivo de 11,8 milhões de ocupações também foi insuficiente para garantir uma vaga às 1,47 milhão de pessoas que todo ano entraram no mercado de trabalho e o desemprego cresceu. No total, os desempregados passaram de 1,9 milhões de pessoas em 1989 para 7,8 milhões em 2001. Dos novos 5,9 milhões de desempregados, 53% possuíam oito anos ou mais de estudo.

Além de mais escolarizada e mais pobre, a ocupação também ficou mais informal e menos protegida. A "precarização" do mercado de trabalho marcou os anos 90. Em 1991, 40 em cada 100 ocupações nas regiões metropolitanas eram informais (assalariado sem carteira, por conta própria e sem remuneração), informa Lauro Ramos, coordenador da Diretoria de Estudos Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em junho deste ano, 45% dos ocupados já estavam nesta situação, calcula Ramos, com base na Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A informalização, observa Ramos, cresceu na primeira metade dos anos 90 como resposta, sobretudo da indústria, à abertura econômica. "A indústria perseguiu ganhos de competitividade e enxugou sua estrutura", diz ele. Depois, o Plano Real e sua política de super-valorização da moeda implicaram ajustes ainda mais profundos no mercado de trabalho.

"E faltou crescimento nos últimos 20 anos", acrescenta o professor Hélio Zylberstajn, da Universidade de São Paulo. "Há um conjunto de forças que conspiraram contra o emprego", pontua o professor, que também credita parte do fenômeno aos efeitos da abertura e os consequentes projetos de inovação tecnológica e de gestão adotados pelas empresas.

"O trabalhador está mais escolarizado e recebendo menos", diz Pochmann, especialista em economia do trabalho e titular da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo

Sérgio Mendonça, diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos (Dieese), observa que entre os anos de 1940 e 1980, a ocupação cresceu a frente do emprego. E a base do emprego era o salário. "Ao longo destas quatro décadas, cresceu o assalariamento, cresceu a contratação formal e aumentou o emprego público", pondera Mendonça.

Oito em cada 10 empregos criados entre 1940 e 1980, eram assalariados. E entre estes, 7 eram com carteira assinada e um era sem essa proteção formal. A partir de 1990, essa realidade muda radicalmente. Em cada dez postos de trabalho criados, apenas três eram assalariados. E destes, um era com carteira assinada e dois sem essa garantia. "A maior parte da ocupação não foi nem formal, nem informal", diz Pochmann, fazendo referência aos outros sete ocupados. "São ocupações alegais", diz ele, praticamente criando o termo.

O "alegal", explica, é diferente do ilegal. Enquanto este está fora do marco legal (é empregado sem registro formal), para o "alegal" não há marco regulatório, não há direitos definidos, não há deveres definidos, diz Pochmann. Aqui estão o vendedor ambulante, o profissional liberal que presta serviço à empresa como pessoa jurídica, o cooperativado e outros.

Essa é, para Pochmann, a grande mudança estrutural dos anos 90. Não é só uma questão do aumento das contratações ilegais, sem registro em carteira. É uma nova relação de trabalho, de emprego, de ocupação. Uma forma que não está regulada, nem com obrigações, nem com benefícios. Nas suas contas, há hoje 34,6 milhões de trabalhadores alegais.

Eles são principalmente os 14,5 milhões de domésticos (tanto os remunerados, como os não remunerados, incluindo da empregada ao jardineiro até o filho que ajuda o pai em bicos ou no comércio sem salário) e os 16,8 milhões que trabalham por conta própria, segundo dados da PNAD de 2001. "Esse é um contingente enorme, cuja relação de trabalho e ocupação está para ser definida", pondera.

Do total de 75,5 milhões de ocupados (de acordo com a PNAD de 2001), estão formalmente garantidos apenas 38% (entre celetistas, militares e funcionários públicos). "Mais de 40 milhões não contribuem para a Previdência. Sem reverter a precarização, a Previdência entrará em colapso", avalia Mendonça.

Para o professor Hélio Zylberstajn, a absurda taxação da Previdência é o terceiro grande fator responsável pela baixa geração de emprego nos anos 90, junto com os efeitos da abertura e o baixo crescimento econômico.

A taxação do empregado representa um custo adicional de 40% à empresa, diz Zylberstajn. "E eu não estou falando de direito, não estou falando do custo do 13º salário, do FGTS, das férias", diz ele. Apenas sobre a Previdência, explica, a empresa recolhe um adicional de 20% de sua folha de salários e fora deste percentual há a contribuição do empregado, que varia de 7% a 11% do salário. "Qualquer política que pretenda reduzir a informalidade precisa reduzir esse custo. Não dá para pensar em reforma trabalhista sem pensar nessa questão", avisa o professor. "E não estou defendendo que se mexam nos direitos", insiste.

Os especialistas divergem se a precarização e a informalização da ocupação são movimentos que chegaram ao limite ou ainda vão ocupar maior espaço no mercado de trabalho brasileiro. Para Ramos, do Ipea, a situação está no limite. Em momentos de retração econômica como o atual, as ocupações precárias crescem, "mas o ajuste estrutural do emprego já foi feito e pode-se esperar uma estabilização ou até mesmo uma redução na informalização ", avalia ele. Mendonça, do Dieese, acredita que o fim está próximo apenas no setor privado, mas não no setor público. "Não dá para saber se o processo de informalização se esgotou. Inclusive, nos últimos anos, têm crescido a terceirização no setor publico", diz ele.

Ramos, do Ipea, acrescenta outra preocupação para o futuro do emprego. "Ele hoje vem a reboque da atividade econômica", argumenta. Primeiro a atividade cresce com consumo impulsionado por crédito e com utilização da capacidade instalada. Depois, ela traz maior criação de postos de trabalho. Mesmo assim, as indústrias mais avançadas tecnologicamente - aquelas que geram valor e permitem ganhos mais intensos de produtividade para a economia como um todo - "são poupadoras de mão-de-obra", lembra Mendonça.

O ministro do Trabalho Jacques Wagner, deixou esse recado na abertura da Conferência Estadual do Trabalho, em fins de agosto em São Paulo: "Não vamos vender ilusão. Reforma sindical e trabalhista não geram emprego. Faz uma década que as pessoas falam que o negócio é desregular, desregular. Vamos à Europa, e a reforma não criou emprego. Na Argentina, também não. É óbvio que temos que avançar e ter uma relação mais transparente, mas o que vai gerar emprego é o crescimento da economia".

Para Pochmann, as empresas já fizeram a reforma trabalhista. Agora, o país precisa de uma reforma do trabalho e não do emprego assalariado. É preciso discutir como trazer para dentro, os 40 milhões que estão fora.

A inclusão dos "alegais", contudo, parece fora da agenda. Na composição do Fórum Nacional do Trabalho, organismo criado pelo Ministério do Trabalho para debater as reformas sindical e trabalhista, este setor não está representado. Quem está lá representa os 35% de ocupados com direitos garantidos. Quem vai incluir no debate os já excluídos?



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