A humanidade mostra a cara
(11/03/03)
CANDIDO MENDES
Estouraram nas praças do mundo os protestos contra a iminência de uma invasão americana ao Iraque, por mais que sanitizada, robótica e sem baixas na produção de uma nova "Star War" pelo Pentágono. É como se a sociedade civil, indignada desde as paradas de Seattle, Quebec, Gênova, Davos e Porto Alegre, agora se reforçasse de uma consciência atropeladora, a mostrar o seu porte. As recentes manifestações nos países de uma primeira aliança com Bush desmentem o que pretendessem Blair, ou Berlusconi, ou Aznar, no mais de milhão de pessoas, em Londres, Roma, Barcelona e Madri, dobrando nas cidades ibéricas a massa gigante que renega uma Inglaterra ou uma Itália a favor da Casa Branca.
As ruas do 15 de fevereiro mostraram o que mais se pode aproximar da cara do Ocidente. Não se registrou até hoje, fora dos Estados Unidos, cheia igual deste ator emergente da mudança no começo do século, tomando a frente dos governos. A população mobilizada sabe que pode ir muito mais além da mera condenação moral do que queiram os ditadores ou, ainda mais inquietante, as nações hegemônicas no comando de nosso tempo. A interrogação funda, entretanto, agora, da democracia, é de saber até onde os Estados Unidos mantêm-se ainda arredios diante da Europa, na grita contra a guerra de Bush.
Os 100 mil de Nova York ou São Francisco mal chegam aos 10% do levante das matrizes da nossa civilização, contra o portento bélico a se desfechar no Iraque. Foi à rua, agora, fração do povo que construiu a epopéia de Martin Luther King contra o preconceito racial, derrubou a Guerra do Vietnã pela mobilização do campus, a partir da repressão mortífera da Universidade Ken State. Após o marco apocalíptico do 11 de setembro, entorpeceram-se todas as formas do dissenso americano, como se a noção visceral do apego à diferença e ao juízo crítico tivesse sido lobotomizada pelo horror da queda das torres.
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A vitória sobre Saddam, pela própria premissa da guerra antiterrorista, não extingue o "neomedo" americano
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Onde, diante do conflito iminente, os gestos da enorme população afro-islâmica, protestando contra a presunção, que o combate ao terrorismo estabeleceu, entre a má cidadania e o credo do profeta? Onde, na mesma linha, recolheu-se o estopim da clássica rebeldia universitária? Onde estão os democratas no Congresso, não obstante ser mínima a diferença que os afasta da liderança perdida o ano passado por um voto no Senado e por tão pouco na Câmara?
Decanta-se em todo o país, ao mesmo tempo, a noção de que razões, ou não, que tenha Bush, a guerra depende, literalmente, da decisão do homem mais poderoso do mundo e da convicção de que parece incoercivelmente revestido. É cruzada pela defesa dos valores em que os Estados Unidos se vêem o campeão do Ocidente, ou, à sua sombra desejo de mudança do mapa, de vez, do Oriente Médio, ou geopolítica do assenhoramento do petróleo debaixo de Bagdá? Lincoln foi à guerra em nome dos valores da liberdade, ameaçados pelo sul escravocrata. Mas hoje é a mesma a nitidez do objetivo final que levaria à destruição de Saddam?
A iminente "Star War" se detona por fenômeno muito mais inquietante, até, que o da dilaceração que acarretará entre os Estados Unidos e ONU, responsável pelos últimos 50 anos de equilíbrio internacional. Não temos, na história, civilização que se constela, por inteiro, numa superpotência e que, ao mesmo tempo, se vê, no seu cerne, possuída pela insegurança indiscriminada.
O dado novo é o desses Estados Unidos, premidos pelo insuportável da queda das torres no coração de Manhattan, e que a mobilização permanente do governo só amplia e desdobra. O que o mundo hoje se interroga é se a viabilidade de um novo 11 de setembro -no espectro da guerra bacteriológica ou da derrubada das represas americanas- articula-se com os poderes de destruição reais de um Saddam -e isto o relatório de Blix torna cada vez menos crível- ou se, ao contrário, as intervenções subsequentes no Irã, por exemplo, engrenadas no "eixo do mal", criam uma reação em cadeia, num antagonismo que já passe a contaminar um denominador islâmico contra o Ocidente, recorrendo à guerra de religiões como resistência nua à hegemonia radical.
Um patriotismo mais acendrado que o das guerras clássicas tomou conta da alma americana para esmagar o agressor pressentido de todo lado. E, de todo lado, lembrado e urgido pelo governo.
O país do dissenso desaparece, sob a nação agora perpetuamente em guerra, tanto se opera, ao mesmo tempo, o trânsito entre a antiga superpotência e o país hegemônico. O semblante de Colin Powell, talvez o mais cauteloso ainda entre os homens da era Bush, exprime ainda os ritos incerto entre a crença de um resultado quase incruento no Iraque e o mundo da escalada sem fim a que pode dar lugar, tanto a queda das torres desentranhou os Estados Unidos do mapa à sua volta.
A vitória sobre Saddam, pela própria premissa da guerra antiterrorista, não extingue o "neomedo" americano. Nem lhe permite atentar ao que gritam em todas as praças da velha Europa, que, barato que seja o preço, não quer a guerra, como a invocada salvação do mundo, a qualquer preço.
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Candido Mendes, 74, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz e reitor da Universidade Candido Mendes.
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