CASLA - FILMES


O Tempo Redescoberto (de Proust) diretor: Raoul RUIZ (chileno)

(Drama)

(2003)


Ruiz foi até mais ousado do que o alemão Volker Schlöndorff, que se limitou a apenas uma das partes do primeiro dos sete livros de Em Busca do Tempo Perdido. Schlöndorff ateve-se ao caráter narrativo de Um Amor de Swann e não se arriscou nos meandros estilísticos de Proust. O filme conta a história dos amores de Charles Swann (Jeremy Irons) com a fogosa Odette (Ornella Muti), um caso cheio de idas e vindas, contornos, contradições e paradoxos, ciúmes, brigas e reconciliações - exemplo de como o escritor via o caráter enredado do comportamento humano no campo do relacionamento amoroso.

Optando pelo caminho mais difícil, Ruiz vai direto ao último volume da Recherche, O Tempo Redescoberto (Le Temps Retrouvé), problemático balanço final e conclusão de todo o percurso dos seis volumes anteriores.

Há uma forma narrativa para Ruiz organizar em termos de cinema a catedral proustiana - ele coloca Marcel (Marcello Mazzarella) em seu leito de morte, evocando sua vida. Fazendo um retrospecto de suas experiências, aspirações não-realizadas, das mulheres que conheceu e amou, a vida nos salões de luxo da Paris do século 19 e início do 20, a relação com a mãe e com a avó, o modelo de infância Charles Swann e a figura dúbia de Odette de Crécy, mãe da sua amada Gilberte. E também o amor tumultuado do Narrador por Albertine, que reproduz, ponto a ponto, o de Swann por Odette de Crécy.

Enfim, tudo isso poderia dar numa banalidade, porque a rememoração proustiana não pode ser resumida àquele filminho retrospectivo que (se supõe) passe diante dos olhos de um moribundo. O "cinema" de Proust é outro porque sua rememoração é organizada em outras bases. Para ficar apenas no factual: o Narrador da Recherche é, apenas em parte, um alter ego de Marcel Proust. Há diferenças óbvias, a mais evidente delas sendo que, ao contrário de Proust, o Narrador é heterossexual. Além disso, as pessoas reais que Proust conheceu na sociedade parisiense são, no livro, decompostas em várias outras. Ou, ao contrário, duas ou mais pessoas podem ser "sintetizadas" na construção de um único personagem. Hoje em dia se diria que o romance é "baseado em fatos reais", e só.

Mas a aposta de Ruiz é mais ousada. Ele não se contenta em devolver ao espectador o fio narrativo da Recherche, que, em última análise, é o que menos interessa no romance. Procura ir além, trabalhando no campo visual a estrutura da memória proposta por Proust em sua obra. Sim, tudo parte do Narrador moribundo, que se relembra, em flash-back, da sua vida. Mas o cineasta conhece bem o texto de que se serve. Sabe que a reconstrução de Proust vem através da memória involuntária, que trabalha de maneira casual e associativa.

Assim, o próprio filme progride por associação de idéias, ou seja, associação de imagens. Trabalha por aproximações, por metáforas e metonímias. Uma coisa leva à outra, e Ruiz valoriza os momentos-chave da recordação proustiana: a batida de uma colher na xícara, que leva à recordação do funcionário de ferrovia que examina as rodas de um trem; a famosa madeleine, o campanário de uma igreja, vista da carruagem, etc. É apenas a partir desses estímulos que a memória profunda pode ser atingida.

Mas, vale lembrar, no livro ela é uma reconstrução literária. Proust trabalha com um mundo de espelhos, como se dissesse que não há um real a atingir, mas apenas algo a reconstruir, da mesma forma que um arqueólogo reproduz, como os mais prováveis, os traços de uma civilização que só deixou ruínas como lembrança.

A partir dessa estrutura, Ruiz distribui os elementos narrativos da obra.

Visita os salões parisienses da belle époque, depois conturbados pela carnificina da 1.ª Guerra Mundial, que chega ao enredo por meio de ecos.

Aquela fatia social, distribuída entre os caminhos de Swann e o de Guermantes, isto é, entre a burguesia endinheirada e a aristocracia, é o mundo de Proust, mas ele o vê sem qualquer complacência. Trata-se de um mundo de homens e mulheres cultos e fúteis, mas nenhum desses personagens é uma caricatura. Pelo contrário, o sistema literário de Proust, pela cumulação de detalhes, impede que se chegue a uma conclusão fácil sobre quem quer que seja. Todos têm suas razões. Para mimetizar essa técnica, Ruiz usa uma tática interessante. Fiel, em espírito, ao perspectivismo de Proust, esvazia os personagens de qualquer psicologia. Seus comportamentos não são colocados em uma relação de causa e efeito fácil, o que é uma maneira de contemplá-los em toda a sua complexidade.

O filme foi chamado de frio, talvez pelo rigor estético típico de Ruiz.

Injustiça. Acontece apenas que a emoção de O Tempo Redescoberto não é fácil, como não é em Proust. Mas quem não se comove com a cena de encontro imaginário entre o Marcel adulto, à morte, com o pequeno Marcel, que esperava pelo beijo da mãe em seu leito de Combray?




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